Kazuo Okubo

Kazuo Okubo é fotógrafo e galerista. Começou sua carreira aos 15 anos, como assistente do pai, Arlindo Okubo. Em 1989, passou à fotografia publicitária, tendo recebido diversos prêmios. Desenvolve trabalhos autorais desde 2003. Há sete anos inaugurou a primeira galeria do Centro-Oeste especializada em fotografia, A Casa da Luz Vermelha, onde coordenou e produziu dezenas de exposições, workshops e eventos. Entre suas exposições individuais destacam-se Minha praia (Prêmio mObgraphia, MIS, 2015); PAISAGimagem (curadoria de Rosely Nakagawa, 2012); Eu te amo (curadoria de Rosely Nakagawa, 2011); e De todas as formas (curadoria de Paulo Faria, 2007). Participou também de coletivas, como Onde anda a onda (Museu Nacional da República, 2015); Brazilian eyes (Miami, 2015); West Encounter East (Miami, 2012) e 11 Photographes Brésiliens (Paris, 2009).

Guardiões do Lago Paranoá

De peito e braços abertos, de alma limpa e corpo inteiro, fotógrafo e amantes da natureza entregam esta coleção de imagens como uma declaração de amor ao Lago Paranoá e um compromisso com a preservação da água e da transparência. Sejamos felizes.

Formado pelo represamento do rio Paranoá, que recebe os afluentes Bananal e Torto pelo lado norte e Vicente Pires, Riacho Fundo, Guará, Gama e Cabeça de Veado, pelo sul, o lago Paranoá é um grande lago artificial.

Os que o frequentam, navegam e se refrescam nas águas conseguiram, há alguns anos, que fosse protegido pela Área de Proteção Ambiental do Paranoá. Com quase 80 km de perímetro, em torno do qual se implantou a cidade, o lago é amado pelos homens e pássaros em rota de migração.

Rosely Nakagawa, curadora.

Texto completo, por Ralph Ghere.

Um lago

Vivemos na cidade como se fosse possível nos abstrairmos dela. Cuidamos apenas de nossas vidas, daquilo que queremos e daquilo de que precisamos, evitando nos preocupar com o panorama maior em que nos encontramos, pois daria muito trabalho. Preferimos voltar nossa atenção para a calçada ruim, o pequeno problema do portão da garagem, as chuvas e a seca, olhando pequeno para um mundo tão grande. É como se a cidade se apagasse, em nome do projeto mais pessoal. Não é bonito, não é altruísta, mas é real.

Depois, vez por outra, os jornais alardeiam questões maiores e, uma vez por ano, em um feriado, celebramos o aniversário da cidade, relemos sua história, relembramos nossas próprias memórias, a data em que aqui chegamos, coisas assim. Lembramos o concurso, ah, sim, que Lucio e Oscar ganharam com um desenho para a nova capital, tudo distante como o tempo de Juscelino e dos tantos outros que ajudaram a construir o desafio “deste planalto central, desta solidão imensa”.

O Brasil, que tanto desconhece Brasília — sua mais perfeita tradução — sabe situar a Capital e sua história no pequeno retângulo do mapa, mesmo sem associar o quadrilátero à Missão Cruls, de 1894, e ao Sítio Castanho. São detalhes da história, menos importantes. Para a maioria dos brasileiros, Brasília ainda é apenas uma ilha política. É como se não houvesse a cidade, seus habitantes e suas histórias. Brasília é tudo aquilo que se desconhece, incluindo aí as perspectivas e problemas reais que a cidade atravessa, sobrevivente.

Resguarda-a um tombamento como patrimônio cultural, pensamos vez por outra, distraídos das formas como isso vem sendo vilipendiado, em pequenas e grandes transações imobiliárias, na forma de avanços das áreas construídas, alterações de destinação, desobediências que os contornos da lei permitem aos mais espertos. Mas é um tombamento pela arquitetura, onde não se situa exatamente nossa geografia. O cerrado não está tombado, o horizonte e o céu, o clima, o sonho e a utopia, nada disso está tombado.

E o Lago Paranoá? Em que momento ele ultrapassa sua própria superfície para ganhar um corpo de mais sólida importância em nossos pensamentos? Em que instante ele deixa de ser figura na fotografia deste lugar e passa a ter o nosso respeito? Para mim, que não pratico esportes, ele é parte do caminho, guardado sob as pontes e quase mais nada. Mas já houve um dia, lá em 1965, em que eu o atravessei a nado, com amigos aventureiros, sem qualquer preparo ou medo, da AABB até quase a Península dos Ministros. Mas esse era um outro lago e eu sou filho de um outro tempo.

Alguns anos depois, perdi um amigo, tão jovem, em um acidente de lancha, e nunca mais ousei molhar os pés naquelas águas. O lago foi se afastando na direção de uma estampa, daquelas que ilustram as antigas latas de lápis de cor. Foi virando paisagem longe dos dedos e dos pensamentos. Recentemente fiz um passeio numa dessas barcas, em uma festa de aniversário, e fiquei feliz de estar no lago, diretamente sobre sua superfície. Especialmente fiquei feliz ao passar sob suas pontes, pois, aí sim, consegui alcançar outro olhar, deslocado daquele que o trânsito rodoviário me permite.

O lago está na origem desta cidade que só é possível graças a ele, que a ele deve as condições mínimas de sobrevivência no quadrilátero. O lago é um dos dados originais do projeto fundador em que, juntamente com o quadrilátero, eram definidas as condições iniciais para a construção da cidade. O lago é, desde sempre, fundamental. Não está tombado, sobrevive como por encanto, tolerando os abusos invisíveis que sobre ele se derramam, protegido pelo decreto 12.065, de criação de sua área de proteção ambiental. Pagamos os impostos e delegamos ao Estado essa função. Que cuidem dele. A nós cabe atravessar as pontes e, se somos jovens, praticar esportes. Nossa Senhora do Lago que o proteja, pois nós seguimos com a vida.

Da janela do carro vejo, lá longe, as garças e suas penugens enganchadas na paisagem. Depois elas desaparecem, mas a vida urge, vamos seguindo, as garças voltarão. É como se o lago pertencesse a elas e aos peixinhos que as atraem por ali. Afinal, peixes há de haver. Avisto pescadores nas pontes, avisto velejadores e lanchas velozes, jet skis e regatas. Deve estar tudo bem.

Mas se vou pesquisar um pouquinho, descubro coisas incríveis, descubro uma fauna muito além das garças e capivaras que invadem os terrenos que beiram suas margens. Descubro a rã-assobiadora, a pimenta e a manteiga, além da rãzinha-da-mata. Descubro a alegria das sucuris, contentadas com a presença da asa-branca, da marreca-caneleira, do irerê, do pato-de-crista, da marreca-de-bico-roxo, da paturi-preta, do pato-corredor, dos peixinhos barrigudinhos, o guarú, o espadinha e o peixe canivete que me passam despercebidos, que nem sabia existirem. No máximo me lembro da notícia sobre um jacaré imenso que, algum tempo atrás, apalermou os pescadores. Ah, os bombeiros devem ter resolvido isso também, tudo eles resolvem, bravos bombeiros. Delego também a eles outras tarefas, ando ocupado demais em ser tudo aquilo que penso que sou.

Na virada dos anos 1980, artistas como Bené Fonteles e Frans Karjcberg inauguraram preocupações ecológicas. Bené organizou um movimento de artistas pela natureza e fiquei feliz em me juntar nessa defesa, numa época em que a ação política em prol do meio ambiente era novidade absoluta, coisa tão estranha que era necessário que artistas chamassem a atenção para as matas e as questões dos mananciais de águas limpas do Brasil. Mas depois, a vitória conquistada, a incorporação das políticas ambientais delegou ao Estado tais atribuições, criaram-se secretarias e ministérios muito competentes e nós retornamos felizes às nossas vidas, isentando-nos, como sempre, de outras preocupações além de nossos umbigos. A natureza, as águas, o lago, isso é tarefa dos outros.

Nossas famílias e nossos amigos nos salvam, cotidianamente, de grandes e pequenas desventuras, acidentes de percurso e surpresas. Precisamos lembrar que, em cada uma dessas situações, quando alguém nos salva, na verdade guarda a vida ao nosso redor, preservando nosso mundo. Pois fico aqui de longe, os pés bem secos, a pensar quem será a família do Lago Paranoá, quem serão seus amigos, quem lhe estenderá uma mão, uma voz, quem lhe dará ouvidos? Quem serão seus guardiões?

Lago bonito que ficas aí, tão quieto, cuida do ar. Cuida da terra e cuida dos bichos, pois eles são bons. Cuida daquele que caia em suas águas e cuida que o tempo não lhe deixe passar.

Ralph Gehre, artista plástico. Dezembro, 2013

 

De Todas as Formas

Esta exposição fala sobre a multiplicidade de corpos, luzes, ambientes e subjetivações. São convites e elogios que Kazuo Okubo faz por meio de sua fotografia. Ele trilha o caminho contrário de muitos artistas. Em vez de buscar apenas um foco e nele mergulhar até a exaustão, é na abrangência e na versatilidade que seu trabalho ganha sentido e força.

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O caminho de Kazuo pela fotografia começou com retratos de casamentos e festas de aniversário. Logo, descobriu a publicidade e nela está há 15 anos. Técnica primorosa, luz perfeita, modelos hegemônicos de beleza. Essa é sua formação como fotógrafo. Porém, em sua busca por uma nova linguagem, Kazuo surpreende com um olhar muito pessoal sobre a nudez. Mantendo o trabalho de pesquisa pelo cenário ideal e a luz adequada para cada situação.

Em De todas as formas, Kazuo afirma que existem corpos, no plural. E faz da pluralidade seu aspecto de beleza. Valoriza aquilo que está inscrito nesses corpos, suas características pessoais, marcas, volumes, texturas, rastros e tudo mais que servir para contar uma história. O corpo como registro de vivência. Este é o sentido do Nu: a afirmação do corpo em todas as suas potencialidades.

“A língua inglesa permite estabelecer a distinção entre naked e nude. To be naked (estar despido) é empregado no sentido de “estar desprovido de roupa”. É a palavra aplicada à idéia de um certo embaraço, à vergonha que a maior parte das pessoas sente nessa situação. Ao contrário, a palavra nude (nu) não contém em si, na aplicação culta, qualquer idéia de desconforto ou falta de pudor. A vaga imagem que ela projeta não é a de um corpo em situação pouco normal e indefinidamente desprotegido, mas sim a do corpo equilibrado, pujante e consciente da sua própria razão de ser: o corpo recriado”.

A fantasia é parte integrante do trabalho de Kazuo. Tanto a publicidade quanto as festas de aniversários e casamentos são concretizações de sonhos. Nesta exposição, os corpos estão sempre inseridos em situações inusitadas: restaurantes, lojas, no meio do cerrado, em paisagens urbanas de Brasília. E mesmo quando em estúdio, os modelos e a luz fantasiam os personagens.

Tradutor, yogue, estudante, body piercer, músico, diretor de arte, empregada doméstica, professor, secretária, artista de circo, atriz, produtora, empresário, garçom segurança. Pessoas das mais diversas ocupações que atenderam às suas vontades de nudez e aceitaram o convite do fotógrafo para uma experiência única. Luzes controladas e naturais. Espaços internos e externos. Todos esses dados indicam o sentido deste trabalho. O sentido do olhar de Kazuo Okubo. A diversidade como forma de perceber o mundo. E como resultado, uma exposição devidamente intitulada De todas as formas.

Paulo Faria

 

Colecionador de Paisagens

Fotogramas de viagem de Kazuo Okubo

O processo de montagem dos acervos que compõem esta exposição iniciou-se com o retorno de Kazuo Okubo ao Brasil, após uma viagem de vinte dias por quatro velhas cidades, registradas em 6.450 imagens. Ver o conjunto original das fotos significa refazer a viagem passo a passo.

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O dia, que se desenrolava sem esforço ou agenda turística, prolongava-se por passeios a pé de tal forma detalhados que é possível reconhecer o trajeto escolhido pelo artista, as ruas que se sucediam em caminhos mapeados. A chegada da noite, a mudança de clima, o movimento entusiasmado dos centros urbanos, todos os passos confirmam o ciclo que se encerra a cada novo dia, pleno de surpresas.

A postura corporal, a estatura física, a altura dos olhos do fotógrafo impregnam cada imagem de um ponto de vista muito particular, embora o objeto de foco seja assunto já longamente visitado na história da arte.

Afinal, as cidades escolhidas – Amsterdã, Praga, Paris e Roma – constituem paisagens urbanas edificadas há séculos, testemunhos da luta travada entre construção, destruição, transformação e preservação cotidianas, provocadas pela ação do tempo e pela ação do homem.

Mais relevante é o fato de que muitas dessas paisagens já se cristalizaram em cartões-postais e ilustram caixas de lápis de cor, agendas, folhinhas e artigos de revistas de turismo. Ali estão os vestígios do império romano, as beiras de rio que serpenteiam cidades seculares, o monumento ao triunfo napoleônico, a basílica máxima da cristandade, a beleza transbordante e eterna de uma Europa com que todos nós sonhamos.

O apego a tais imagens justifica-se não apenas por sua beleza natural ou arquitetônica, mas especialmente pelo valor histórico desses lugares e pela recorrência dessa iconografia na pintura, no desenho e na gravura de grandes mestres. Formamos nosso olhar a partir dessa iconografia, conjunto fundamental de vocábulos arquitetônicos que constituem a cultura urbana ocidental, organizados nas cidades como uma cartilha de reconhecimento do universo humanista.

O grande desafio da curadoria foi fixar escolhas na profusão de fotos de excepcional qualidade. A cor, a definição e o enquadramento, extrapolados à perfeição em milhares de imagens, foram motivo de grande dificuldade no empreendimento. Como escolher uma dúzia de fotos, entre centenas de clics impecáveis?

Seria ingênuo tentar justificar a qualidade que caracteriza a fotografia atual como mero fruto das facilidades oferecidas pela tecnologia. Na verdade, a perfeição se estabelece como patamar inicial para esse artista e advém de dedicação obstinada, aprimorada em décadas de trabalho cotidiano.

Munido de máquinas simples, nenhum equipamento de peso, nem sequer um tripé, Kazuo não empreendeu uma viagem com o objetivo de produzir uma exposição. Tudo foi espontâneo, no acaso de um flâneur que se surpreendia com o mundo ao seu redor e essa naturalidade define os resultados.

Vale questionar o que se registra em uma fotografia. Seguramente não apenas o objeto enfocado, pois nenhum artista chega inocente ao seu trabalho. Antes, carrega para dentro dele escolhas anteriores, alternando ao longo de um dia de trabalho a construção simultânea de diferentes coleções de imagens, que se estabeleceram há muito tempo em sua memória, em seu olhar.

A fotografia consolida ainda, além de escolhas, o apego a certos aspectos do mundo, aqueles sob os quais a personalidade do artista se formou. A máquina – artefato intermediário – confirma quem é o homem por trás da objetiva. O artista projeta-se sobre a paisagem, na descoberta e reencontro de si mesmo. E com a foto revela-se, na mesma medida, a subjetividade, o homem e sua própria história.

É mais fácil avistar essa amplitude em imagens mais complexas, compostas pela sobreposição de planos infinitos, reflexos, fachadas, vidros e superfícies espelhadas. O acervo que intitulei Paisagem obtusa está sobrecarregado de referências pictóricas. Aqui a cidade funciona como um suporte. Em suas superfícies de acúmulo inscreve-se a vida de uma criatura sempre incompleta, para quem fantasia e realidade somam testemunho de sua incompletude.

Construído de forma oposta, o conjunto Paisagem formal de Kazuo Okubo, baseia-se na legibilidade da linha do horizonte. O olhar fixado em sua estatura, a distância do corpo ao objeto fotografado, a mesma amplitude de visão, a mesma escala (como se essas paisagens estivessem dispostas lado a lado, em caixas fixas de um museu de história natural) contradizem a verdade geográfica. Existe um mundo perfeito, pura harmonia e beleza. As criaturas posam como atores controlados; os pássaros se encaixam perfeitamente contra os céus; as sombras, as cores, os elementos se orquestram no limite da naturalidade, resultando construções apuradas pelo olhar. E, no entanto, são fotos retiradas da dinâmica incontrolável das cidades.

O terceiro acervo, Paisagem colagem, registra uma construção ainda mais elaborada, beirando o imponderável, o impossível. São fotos que revelam um lado mais interior da urbis, um universo-dentro, fruto da anarquia desvairada que a comunicação de massa impõe à superfície citadina, resultado da superposição de imagens da publicidade variada que polui visualmente as cidades. São affiches, cartazes, chamadas publicitárias, banners de fachadas, contrapondo planos, ofendendo escalas e ironizando as nossas existências. Mesmo quando trafega no espaço poluído pela publicidade – para a qual o artista tanto produziu em sua vida profissional – os fotogramas de viagem de Okubo conseguem manter distância, não se restringindo a aspectos efêmeros. Sobre a paisagem recorta-se um outro espaço, como buracos, portais de passagem, túneis. Surpreendo-me ao ver essas fotos, como se houvera algo de muito raro a acontecer nesses lugares, como se o artista houvesse instalado perturbações propositais, distúrbios na paisagem. Esqueço-me de que essa é a forma que emprestamos hoje às cidades e que achamos normal que seja assim. A fotografia registra a lógica rocambolesca de nosso tempo, graças à qual as agruras do consumo são neutralizadas como uma dádiva da paisagem.

Muitos outros recortes são possíveis e outros muitos acervos poderão ser montados, pinçando imagens desse conjunto formidável. Mas nenhum esforço nos afastará da particularidade de seu corpo autoral. Não mais uma Europa, mas um outro continente, um lugar chamado Kazuo Okubo.

Ralph Gehre Novembro/2008